A alegoria agora é cibernética, e a derrocada da intelectualidade ocorre não sob o peso de baionetas, mas da anestesia performática promovida pelas tecnologias de automação cultural.
A performance de Andrea Colamedici, ao criar o personagem fictício Jianwei Xun com auxílio de IAs generativas, é o retrato dessa nova era: uma hipnocracia. Seu ensaio “The hypnotic architecture of digital power”, promovido em eventos acadêmicos de renome e citado por intelectuais reconhecidos, revelou-se um experimento de autoria fictícia. As implicações, no entanto, transcendem a fraude midiática e apontam para a falência sistêmica da crítica.
Jianwei Xun, embora inexistente enquanto indivíduo, representa uma tendência concreta: o uso das ferramentas de IA para criar narrativas com densidade filosófica simulada. Seu texto, recheado de referências a Baudrillard, Han, Stiegler e outros, apresentava-se como crítica aguda à arquitetura algorítmica da sociedade contemporânea. Ironia das ironias: era precisamente essa crítica que também se revelava uma simulação.
Colamedici afirmou tratar-se de uma “performance artística” que pretendia alertar sobre os perigos do uso desmedido das IAs. Mas, como apontam Dirce Waltrick e Fedra Rodríguez, o argumento soa mais como álibi que como tese. Tal como o perfil conspiratório QAnon, a criação de Xun revela a facilidade com que a narrativa digital é aceita como real — especialmente quando envolta em uma linguagem academicamente sedutora.
O que está em jogo não é apenas a autenticidade de um autor, mas a dissolução da própria crítica. O que levou intelectuais a citarem, endossarem e difundirem Xun sem o menor crivo? Em parte, a obsolescência da dúvida metódica que, como Flusser lembrava, deveria ser o princípio de toda investigação séria. A crise da crítica, hoje, não se dá por censura — mas por excesso. Excesso de conteúdos, de inputs, de ruídos. Nesse sentido, o algoritmo funciona como anestésico: oferece relevância sem reflexão, trending topics sem sentido.
Byung-Chul Han já alertava em A Sociedade do Cansaço que vivemos em um regime de positividade, onde a crítica é substituída pela performance incessante. A ideia de um “presente de antecipação constante”, proposta por Xun (ou melhor, por Colamedici e suas IAs), traduz precisamente essa lógica: tudo precisa ser novo, mas nada precisa ser verdadeiro.
No cerne do episódio está a crise da autoria — e não apenas no sentido jurídico. A autoria enquanto responsabilidade discursiva, enquanto sujeito situado no tempo e no espaço.
Quando modelos generativos produzem textos com densidade aparente, quem responde pelas consequências? A IA? O programador? O usuário?
Zuboff, em A Era do Capitalismo de Vigilância, já havia alertado que a delegação de funções cognitivas às máquinas enfraquece o sujeito autônomo. Harari, em Nexus, amplia esse diagnóstico ao demonstrar como a linguagem — nossa principal ferramenta de organização simbólica — está sendo apropriada por entidades que não compartilham da nossa experiência intersubjetiva.
Estamos, portanto, diante de um paradoxo: entregamos às máquinas a tarefa de produzir linguagem — exatamente o que nos torna humanos.
A resposta não está em renegar a tecnologia, mas em reconfigurar a crítica. Para isso, é preciso restaurar o que Flusser chamou de “pausa reflexiva”. Não há crítica sem intervalo. E não há intervalo quando tudo precisa ser imediato, compartilhável, viral.
Deleuze e Guattari, ao falarem das “máquinas desejantes”, já antecipavam esse ciclo: sistemas que não apenas respondem a desejos, mas os moldam, reproduzem e perpetuam. O intelectual, nesse contexto, só mantém sua função se recusar o jogo da aceleração — se reverter o transe.
O episódio de Xun/Colamedici deve ser encarado como alerta. Não estamos mais no campo das farsas pop como o caso Milli Vanilli. Estamos lidando com simulacros sofisticados que burlam os filtros tradicionais da crítica acadêmica e cultural.
E mais: estamos diante de um colapso da confiança epistêmica. A proliferação de conteúdos gerados por IA, aliados ao desmonte dos mecanismos de verificação, cria um cenário em que a própria ideia de verdade torna-se obsoleta.
Como resposta, precisamos fortalecer práticas de análise crítica e reconstruir os fundamentos da educação e da produção intelectual. É hora de restaurar o valor do processo sobre o produto, da dúvida sobre a certeza, da autoria sobre a viralidade.
Se há algo a aprender com Jianwei Xun é que o futuro do pensamento não está garantido. Ou nos reapropriamos dos instrumentos da crítica — ou nos tornamos peças do próprio sistema que deveríamos questionar.
Não é apenas o fim da autoria. É o fim da autoria como antídoto contra a manipulação.
E, nesse cenário, a pergunta mais urgente talvez seja: quem somos nós quando já não pensamos por nós mesmos?
1. Harari, Nexus: Uma breve história das redes de informação (2024) →
Harari traça a linha evolutiva que liga redes orais, escritas, impressas, eletrônicas e digitais, defendendo que cada salto tecnológico reorganizou as hierarquias de poder. A tese central é que quem controla a infraestrutura da comunicação controla a narrativa coletiva—e, por extensão, a direção das sociedades.
2. Han, A Sociedade do Cansaço (2015) →
Han argumenta que saímos de um modelo disciplinar (imposto por proibições externas) para um modelo de auto‑exploração: o sujeito empreendedor de si mesmo. O excesso de positividade — “você pode tudo” — gera exaustão, depressão e burnout, transformando liberdade em nova forma de coerção.
3. Zuboff, A Era do Capitalismo de Vigilância (2020) →
Zuboff mostra como as Big Tech converteram dados comportamentais em fonte primária de lucro, criando mercados de previsão que negociam nossas futuras ações. A tese denuncia a captura silenciosa da autonomia individual: vigiar para lucrar, lucrar para moldar comportamentos.
4. Barthes, O prazer do texto (2020) →
Barthes diferencia o “texto de consumo” (legível, passivo) do “texto de prazer” (escrevível, ativo). Seu ponto central: o prazer estético nasce quando o leitor vira cúmplice, preenchendo lacunas, desmontando sentidos fixos e produzindo novos significados.
5. Baudrillard, A ilusão vital (2001) →
Baudrillard sustenta que, na era dos simulacros, o real é substituído por representações que simulam autenticidade — a hiper‑realidade. A tese propõe que vivemos presos a cópias sem original; a “vida” que consumimos é uma sucessão de ilusões mediáticas.
6. Flusser, Da Dúvida (2011) →
Flusser defende a dúvida como motor epistemológico: questionar continuamente é a única saída para escapar dos aparelhos que programam nossa percepção. Sua tese central afirma que, numa cultura saturada por imagens técnicas, cultivar a dúvida é condição de liberdade intelectual.
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