Abro os olhos em tempo de recobrar o equilíbrio enquanto correntes quentes de ventos de verão sacodem as laterais de um corpo estranho que habito no momento. Ouço certo farfalhar de papel bem fino e também de tiras de plástico, além da tensão de um fio que me prende ao solo. Por cima de um ombro de bambu olho em volta, um bairro antigo perdido em 1986, muitas árvores, outros como eu que flutuam, ora desenhando manobras arriscadas que lhes custarão a desconexão e perda, ora apenas flanando. Lembro que no momento estou apenas flanando e, como que chamado de volta, olho para baixo. Estou lá, também, olhando para mim mesmo em outra forma. E, assim tão logo havia aberto os olhos, volto. Habito agora corpo igualmente fino em um campo de futebol e desvio a tempo de evitar o choque com a bola enxarcada de lama.
Recobro novamente esta estranha forma de consciência em outro tempo. Mais uma vez sacudo, mas desta vez preso ao chão em um corpo muito, muito pequeno. Tento achar graça da ironia dos acontecimentos, pois o correto era viver em constituição leve, fluida, translúcida, verde. Mas a julgar por tudo o que me afeta neste exato momento (eterno, reincidente, que-não-passa) sou pesado, encrostrado, nublado de meu potencial por meses de acúmulo: dióxido de carbono, poeira e lixo. Ao meu lado, a embalagem de picolé-tubaína, ressecada vai e vem, vai e vem. Morto.
Suspiro fotosinteticamente desalentado até que uma rajada de vento sujo, mas ainda salvadora, se encarrega de erguer minha estrutura para um ângulo a partir do qual, mais uma vez, consigo me ver. O corpo ainda fino está me olhando do alto de uma janela de um ônibus que cruza a cidade em busca de futuros melhores. Sorrimos um para o um, nos reencontramos. Tentamos nos comunicar, mas somos interrompidos pelo diesel em forma de fumaça negra que se encarrega de acrescentar mais uma camada de sujeira, e sacudo, e cof-cof, e Av. Brasil em 1993.
Recobro a consciência e me sinto puro músculo, aquele que nunca para até que pare para sempre. Bato rápido e quero pular pela garganta que me bloqueia e gritar: você nasceu para outra coisa! Lembro de sintetizar isso com um medo caipira que fez o corpo em que habita caminhar mais cedo saindo da sala escura de Festival de Publicidade, largando todos atônitos (“Mas ainda vai rolar a premiação, fica”) com medo do caminho de volta para casa. Com medo, mas ainda, do caminho PARA FORA da casa, que se impõe naqueles dias. Desta vez não me olho, entro em mais um ônibus, agora executivo, pastas, folhetos, títulos, filmes me cercam como poeira de 1993. Acumulam-se, me deixam menos fluido, menos verde.
Abro os olhos e, finalmente, experimento encontrar a mesma pessoa, no mesmo tempo, na mesma forma, no mesmo corpo. Espelho. Fazendo barba em 2018. Talvez por quase nunca ter tentando, foi tão revelador: e se eu me projetasse em mim mesmo como coisa e tentasse voltar de lá com algo novo para os meus projetos de conteúdo? Mergulho, reconecto, retiro camadas. E, então, estou sentado em uma mesa de produtora web e, em 2000, por obra de Jarbas Agnelli, vejo isso aqui:
Sinalizo para quem chegou depois: o filme A Semana foi premiado com um Leão de Ouro de Cannes mas isso, para efeito deste texto é irrelevante. Na época, estava de saída da publicidade e mergulhando de cabeça no mundo digital que começava a passos lentos no Brasil, nascido a partir de agências que criaram peças como essas. Arte a serviço. Passei anos perseguindo este estado de excelência que conectasse com algumas de minhas particularidades e fosse, em si, forma de estar no mundo.
O filme “A Semana”, criado para a revisa Época me contou isso: era possível. Existia alteridade possível em qualquer indústria criativa. Para os otimistas, sete oportunidades. E, neste dia, em 2018, encontrei como seria a forma mais cômoda de dizer: “Ei, foi para isso que nasci”.
Aqui me conecto novamente com o “Maio de Descobertas” e sinalizo para a minha provável audiência que a minha alteridade possível, foi encontrar a voz para este projeto, que me conecta com a profundidade com a qual me projeto no mundo e a necessidade visceral (era tão melhor uterina, mas não o tenho) de morar na fronteira entre tecnologia, comunicação e cultura. Posso ser pipa, posso ser planta em beira de estrada, coração amedrontado com a vida adulta. Posso, no mesmo tempo-espaço do agora e do fluxo de consciência.
Lembro, ainda, de sinalizar para a provável audiência que esse estranho exercício de alteridade me acompanha até hoje. Gosto de me projetar no inanimado do mundo, imaginá-lo personagem de histórias surrealistas. Gosto de ir e voltar, me dissolver no comum dos dias e experenciar outras existências. Na maturidade, descobri que isso pode se chamar dissociação. Obra de cérebros não-normativos que pensam o mundo de forma simultânea, transcendendo o tempo em que habitam. Sendo o tempo em uma segunda-feira e na terça não-sendo, dissolvendo-se no não tempo. Entenda como quiser-quiz-quererá.
Respiro fundo e tento explicar que foi uma escolha chamar essa assinatura sonora e estética de “A voz”. Não é exatamente nova, temos mais de 20 podcasts criados a partir dela. Outros tantos artigos e mais algumas edições da newsletter.