Penso#2 – Sobre quase morrer e sobre quase viver

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Percebo, hoje, que reservo pouco tempo para falar dos micro momentos decisivos quando a gente discute o valor que a gente dá para a nossa vida. A minha já teve um re-start conseguido graças a um retângulo de queratina em um montículo de areia em 1989.

Mais uma vez inicio a gravação, respirando fundo e fico imaginando que cenas mentais esses poucos minutos de áudio vão construir em uma provável audiência.

E que toda segunda-feira quero fazer isso. E que você a audiência pode encontrar esses e outros episódios em mauroamaral.com, nos principais aplicativos de podcasts, nas redes sociais onde estou com @mauroamaral e em meu email no eusou@mauroamaral.com


Para além da experiência auditiva

The Good Place: Netflix, 2016. Eleanor Shellstrop está morta. Mas isso é só o começo. O interessante é nota como ela e todos os outros são apenas escadas para o arquiteto Michael. Nota mental: só quem se acha imortal pode ser surpreendido com mudanças de percurso.

Russian Doll: Netflix, 2018. Nadia morre todos os dias. Até que não. E isso é o começo de uma discussão sobre a honestidade intelectual dos millenialls.

Forever: Amazon Prime Video, 2018. June tem uma vida sem brilho. Uma pós-vida também maçante. Até o dia que fica frente a frente com o oceano.

Para entender o projeto

Transcrição do episódio

Estou sacudindo no banco de trás de um Del Rey, sinto frio e isso me faz diminuir ainda mais a minha área útil. Eu quase encaixo no espaço entre a porta e o assento. Sou como um guarda-chuva fechado e largado ali, mais comprido do que largo. Ouço, ao lado do banco do motorista, a quase-futura-garota conversar animadamente com alguém que senta na parte de trás da sala nos dias de aula e de quem nunca lembraria o nome. Talvez de propósito.

Me pego rindo do meu único ponto de contato com o diálogo: as nucas. Elas têm um movimento ritmado de conversa cúmplice e que nunca consigo ver no dia a dia, já que estou sempre sentado na frente, prestando atenção e fazendo valer minha formação na melhor escola de um bairro distante no tempo e no espaço. As nucas dos que estão na frente do Del Rey, eu mal conheço agora com a mesma satisfação que não conheço seus rostos, quando atrás de mim, na sala de aula. Todos mal me conhecem, em resumo. Com certeza de propósito.

Mas todos riem. E eu, mais molhado do que limpo, ainda como um guarda-chuva largado e fechado, me encolho mais um pouco. Torço para que, no futuro, ninguém me entenda mal: embora não soubesse, daria tudo certo. No momento, estou apenas satisfeito com algumas decisões e entendimentos que só esse final do dia de churrasco de turma, de final de ensino médio quando ele se chamava segundo grau, poderiam me ensinar. E lembro que há alguns segundos, tudo o que eu tinha eram mais alguns segundos.

Percebo, hoje, que reservo pouco tempo para falar dos micro momentos decisivos quando a gente discute o valor que a gente dá para a nossa vida. Noto que esse mesmo pensamento tem andado em voga na sala de guerra de roteiristas em dois dos principais serviços de Streaming da atualidade e faço um rabisco mental.

Nele listo o primeiro título que me recordo: a série The Good Place (Netflix, 2016), anotando no canto que seria de bom tom evitar spoilers da vida após a vida de Eleanor Shellstrop. Lembro de mencionar que ela, Chidi, Tahani e Jason funcionam apenas como escadas para a escalada do arquiteto Michael, o protagonista oculto. Anoto a frase que acho interessante: só quem se acha imortal pode ser surpreendido com mudanças de percurso. E lembro que às vezes ou quase sempre, somos nós mesmos protagonistas ocultos de nossa vidas após outras vidas.

Engasgo com café de cápsulas gourmet assim como vão engasgar, em 2025, em uma imensa ilha artificial no Oceano Pacífico, feita de lixo não biodegradável, as Tartarugas que jurei estar salvando ao colocar as cápsulas numa irônica “Sacola de Reciclagem”. Me lembro das horas anteriores ao passeio de Del Rey, quando vi sair das minhas entranhas pedaços de alga. Revivo a sensação de achar que a vida parecia pesar mais do que os meus 16 anos permitiam… até perceber que um salva-vidas estava bombeando água para fora dos meus pulmões, pressionando com os joelhos meu corpo branco, magérrimo, inadequado para o sol. Brilhante.

Sinto que a areia e a maresia tornam as imagens mais embaçadas do que a distância de minha meia-idade de hoje permite mas, ainda assim, revivo a hora exata do ocorrido. Penso na vergonha de estar ali e na sorte de ter recomeçado só porque pensei “Eu não vou morrer aos 16 anos antes de passar no Vestibular” ao mesmo tempo em que a ponta da unha do meu dedão do pé encontrava o chão. Meu ponto de contato com a vida que ia embora em 1989 era apenas um retângulo de queratina que deu a sorte de embarrar em um montículo de areia na praia da Marambaia, área militar, nem sei como estava ali. Vamos, vão levar você para casa naquele Del Rey. Você consegue andar?

Sou invadido por uma agitação juvenil e respondo tão alto quanto a voz interior permite: “Eu nunca paro de andar”. Recomeço na areia vomitada de algas, recomeço no banco de trás do Del Rey na forma de guarda-chuva encolhido, recomeço sempre.

Acho curioso falar isso no exato momento que me recordo de Nadia em Boneca Russa (Netflix, 2019), outra série recentemente streemada e exagerada ao extremo. Anoto mais uma vez o aviso de não-spoilers e lembro, primeiro, como é dura a vida dos resenhadores de hoje e depois…

Depois, percebo que o roteiro e direção, ambos da própria protagonista Natasha Lyonne, foram feitos exatamente para Millenials que chegam aos 30 para falar da impossibilidade de recomeçar sua vida sem que para isso você mude de universo dos quais se julgam o centro tal qual Reis e Rainhas entronados por alguma entidade superior. Sinto mais uma vez o aperto, dessa vez sem salva-vidas, e consigo respirar fundo e usar esse oxigênio para lembrar que isso é determinismo puro e até mesmo uma pitada de desonestidade intelectual.

Sigo acreditando por alguns segundos que, nos dias de hoje, não exista mais a honestidade intelectual. Desconfio que ela talvez ela já não existisse no dia em que vomitei algas. Recomeço um exercício de não-lembranças: não sei sobre o churrasco que era para estar acontecendo na casa de algum militar graduado, tudo o que registro naquele momento é a quase-tragédia em três atos.

Vivo um epílogo em um banco de trás de um Del Rey, ainda guarda-chuva

Experimento o clímax de anti-herói com o dedão do pé clicando no botão restart da vida, que naquela profundidade tinha o formato de um montículo de areia.

E Me coloco finalmente no primeiro ato quando, de frente para a praia, olho amigos nadarem mais leves ainda do que a sua falta de preocupação enquanto estou de costas – porque nunca vejo o rosto e a nuca de ninguém. Caminho em direção ao mar revolto. Não sei o que tento provar. E não sei que não vou conseguir. Sinto o cheiro do resumo do dia: apenas entro, sem cabeça, para ver no que dá. O que ficou para trás, já foi.

Noto a semelhança com uma das cenas finais de Forever (Amazon Prime Video, 2018), a última das 3 séries sobre o tema, que vi recentemente. Lembro de June quando ela se descobre desencarnada e passa a reviver uma vida de rotina igualmente desgastante até descobrir novidades aqui e ali que a colocam frente a frente com o Oceano. Lembro também que tudo isso começa com ela engasgando mais uma vez, como quis Maya Rudolph, que escreve e dirige a série. Lembro que mortos respiram debaixo d’água. Vivos, tartarugas e humanos, vomitam lembranças não biodegradáveis. E mergulham novamente de costas para tudo, todos os dias que vão à praia.

Chego na 1115ª palavra em um episódio que era para ter apenas 500 como planejei incialmente. Lembro que embora tenha sido o segundo roteiro escrito, não sei em que ordem entrará quando, quem sabe, vá ao ar. Anoto no canto do caderno já quase no fim que seria melhor ter aprofundado na análise das 3 séries de temas parecidos, que deram origem a ideia do episódio.

Desisto de controlar o fluxo das marés, a rota migratória de tartarugas comedoras de plástico, a cor das algas que vomitei, o som do motor do Del Rey e os convites para churrascos. Me concentro nos montículos de areia e na unha do dedão do pé, buscando sempre e sempre, apoio para nunca parar de andar.

Mais uma vez inicio a gravação, respirando fundo e fico imaginando que cenas mentais esses poucos minutos de áudio vão construir em uma provável audiência. E que toda segunda-feira quero fazer isso. E que você a audiência pode encontrar esses e outros episódios em mauroamaral.com , nas redes sociais onde estou com @mauroamaral e em meu email no eusou@mauroamaral.com

Aperto o REC. Ouço o motor do Del Rey e sinto frio.

Sobre o autor

Mauro Amaral

Meu principal foco de atuação é a criação de projetos de conteúdo interessantes, divertidos e leves para marcas, organizações e produtos.

Em função desta opção, transito bem entre jornalismo, publicidade e entretenimento, pesquisando continuamente e filtrando ativamente as tendências do momento para aplicá-las no dia a dia dos meus clientes.

Construo, mantenho e estimulo equipes criativas há 10 anos; com especial predileção por identificar novos talentos e trabalhar potenciais multidisciplinares.

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