Livro: O Jogador Número 1, Ernest Cline. O documento da geração sem lenço.

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De tempos em tempos, autores disputam a primazia por escrever a obra de sua geração. Isso pode nos levar a caminhos insuspeitos, de libelos como “Mein Kampf”, a delírios pseudo-científicos de um “Neuromancer”.

E, em ambos os casos o leitor é apresentado às causas do seu tempo e assim, escolhe engajar-se ou não no clima predominante quando à época de sua passagem pelo planeta.

A obra de estréia de Ernest Cline, O Jogador Número 1, não tem essa pretensão, mas, pode muito bem candidatar-se ao posto de romance representativo da segunda década do século XXI.

Mesmo vindo dos anos 80, era idolatrada pela temática do livro, considero-me um filho intelectual da geração ’00. Isso porque, se na década de 90 tentava arquivar meus textos em fitas K7 de micros de 8 Bits e conectar em redes de BBS que discutiam a iminente chegada da mãe de todas as redes, foi na chegada da internet comercial que comecei a efetivamente trabalhar conteúdo de forma pública.

Não tive fanzines, não imprimi jornais de grêmios estudantis (que sempre julguei improdutivos), mas tive blogs (muitos) e portais (alguns).

Por conhecer a dinâmica de quem produz cultura hoje, pelo menos a digital é que a leitura do “Jogador…” é tão interessante. Vou provar porque, mas antes, uma rápida sinopse

Os caça-ovos
Em uma distopia que ouso aqui batizar de evolucionista (visto que é claramente realizável e possível) o mundo foi dominado por uma simulação hiper-realista chamada Oasis. Nela estudamos, trabalhamos, nos divertimos e, claro, para ela escapamos de uma realidade nada convidativa. O mundo da época já passou pela elevação do nível do mar, aquecimento global, falência geral etc.

Nosso herói faz parte de um seleto grupo de jogadores chamado “caça-ovos” que percorrem os milhares de mundos simulados da trama atrás da maior fortuna já conseguida por um homem, no caso o criador da própria simulação, misto de Steve Jobs e Bill Gates, chamado James Donovan Halliday.

Como prova de sua genialidade, Halliday criou um complexo ARG (Alternate Reality Game) que uma vez completado daria ao seu vencedor o direito de achar o seu “easter egg” e com ele a incrível quantia de 240 bilhões de dólares.

O que torna a obra tão contagiante é que a resolução do ARG envolve solucionar enigmas totalmente baseados na cultura POP oitentista, tão celebrada há tanto tempo. Não há quem não viveu a época que não se divirta.

Amigos que se reúnem para resolver um mistério atemporal. Quem resiste?

A questão da referências
Contudo, a questão da referência pode ser entendia sob dois ângulos. O primeiro sutil e elegante e o outro gratuito, superficial e, em sendo assim, representante de sua época.

Para entender melhor: considero o defeito da obra como aquilo que a qualifica como romance da geração atual. Vamos lá, vamos lá.

A primeira camada referencial, é aquela que nos mostra uma obra baseada em grandes arquétipos do cinema e da arte da narração. O ciclo que vai do herói incompreendido que sai do seu ambiente comum (sua “casa”), busca o artefato (sabedoria…), encontra com o mentor e, finalmente, acha a relíquia sagrada é o famoso mono-mito ou mito primordial que sempre funciona.

Por isso você se “sente em casa”, ao ler (ou reler) o bom e velho mito do herói com corporações de agentes impessoais (“Matrix”), um grupo de amigos super descolados (“Conta comigo”, “Goonies”), ajudados por um cientista louco (“De volta ao futuro”).

O caldo azeda justamente quando da metade para o final do livro, já com o universo apresentado e a “pena” um pouco gasta, o autor se resume a listar referências e brincar de Quiz com o ansioso leitor.

A técnica soa falsa porque o esforço da pesquisa foi substituído pela rapidez da Wikipedia e do Google. Dá para sentir o autor recorrendo ao senhor das buscas a cada empacada criativa.

Dá para ouvi-lo digitando termos de busca para explicar o porque de determinada canção ser fundamental para a trama. Assim ficou fácil falar de filmes e series de TV com mais de 30 anos de idade.

Amigos que se reúnem para recriar situações atemporais. Quem sobrevive?

A narrativa enquanto dica de nossa situação atual
Em recente mesa-redonda na qual fui convidado por um autor amigo para discutirmos os temas de sua mais recente obra, baseada nas ferramentas de computação em nuvem; levantei a questão da substituição de nossa memória natural e cultural por aquela representada por ferramentas de busca.

O argumento central é de que estamos recuando e diminuindo nossa capacidade natural de acumular informações em troca de poder subir nossas memórias para os bancos de dados do Google. A todo momento podemos acessá-lo como, em tese, a de todos os outros que o mesmo fizeram.

Se Pierre Lévy considera isso um ponto de virada de nossa evolução (e surgimento de um grande “Pensamento Coletivo”) o uso atual dessa informação e o desdobramento comercial que empresas fazem dele, é altamente preocupante.

Vivemos de repassar pequenas citações e links em redes sociais, sem parar para retirar nossos óculos de imersão (smartphones, tablets) como faz Parcival, o personagem principal da obra.

Sim, o estado atual das coisas é quase de imersão total. A educação em seu método tradicional naufraga repetidas vezes em tentar acompanhar a ultra-velocidade de seus alunos de hoje. Os diagnósticos de TDAH (transtorno de déficite de atenção e hiperatividade) são cada vez mais comuns, muito em função do não entendimento de nossa nova linguagem e estrutura narrativa e do descompasso de ritmo entre quem ensina e quem já sabe.

Falamos mais, com menos profuncidade e pensamos menos. Seria esse o grande plano do grupo dos “Seis”, como são chamados os vilões da história que utilizam grande capital e profissionais treinados para roubar na disputa pelo ovo sagrado de Halliday?

O Jogador Número 1 é uma obra referencial em todos os sentidos. Sua leitura superficial deixa claro que já, já, estará nas telonas (os direitos já foram comprados pela Warner) mas, um pensamento mais atento e um olho ligado em questões além das entrelinhas, nos faz parar para pensar: quem vai vencer ao final?

Sobre o autor

Mauro Amaral

Meu principal foco de atuação é a criação de projetos de conteúdo interessantes, divertidos e leves para marcas, organizações e produtos.

Em função desta opção, transito bem entre jornalismo, publicidade e entretenimento, pesquisando continuamente e filtrando ativamente as tendências do momento para aplicá-las no dia a dia dos meus clientes.

Construo, mantenho e estimulo equipes criativas há 10 anos; com especial predileção por identificar novos talentos e trabalhar potenciais multidisciplinares.

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