Penso#15 – Sobre o jogo da primeira lembrança

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No Penso#15, faço um convite inusitado a minha provável audiência: revisitar sua mais antiga memória e submetê-la ao crivo da realidade. Isso porque é certa a aposta de que grande parte de nossas memórias mais antigas são, na verdade, falsas memórias.

O Jogo da Primeira lembrança é, pois, um exercício para entendermos como se formam as falsas memórias em nossas vidas e em seu desdobramento digital e mais faminto: as redes sociais.

Que livros rondaram esse programa?

Quando estava gravando esse programa, vários livros vinham à minha cabeça. Eles juntos formam um pano de fundo que nos ajudam a conhecer um pouco sobre Sociedade de Performance, Bolhas e Redes Sociais e Capitalismo tardio. 

Esses conceitos juntos são fundamentais para entendermos o porquê fiz a relação entre Falsas Memórias, Redes Sociais e Indústria da Nostalgia. 

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Links essenciais sobre o programa

  • Leia o Manifesto do programa: bit.ly/ManifestoMauroAmaral
  • Entre para o Grupo de Distribuição de conteúdo em www.mauroamaral.com/direto
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  • Siga o projeto no Instagram em @mauroamaral

Transcrição do episódio

Caminho olhando para os pés ainda pequenos, medindo dedo a dedo a distância da cozinha para a copa. Ao levantar a cabeça, olho ao meu redor. 

No teto sem laje, telhas de barro mal encaixadas deixam passar alguma luz. A mesma coisa fazem os tijolos vazados que acumulam poeira e, às vezes, ninhos de passarinho. 

Anos e anos depois, descobriria que eles se chamam Cobogós, uma invenção brasileira, mais um de nossos legados arquitetônicos para o mundo. 

Os cobogós tem características bem interessantes: conseguem refrescar e iluminar o ambiente, além de diminuir o custo de construção. E isso tudo projetando sombras  e padronagens quase hipnóticas por todo o ambiente.

Sigo caminhando alheio à esse detalhe geométrico e chego até à mesa. Sou tão pequeno que meus olhos ficam à altura do tampo de fórmica. 

Um rádio azul  – daqueles que se levava para o Maracanã – está ao fundo e quase posso ouvir ainda hoje, o programa de todos os domingos no café da manhã: as curiosidades do “Você sabia?” na Rádio Relógio.

Na ponta dos mesmos pés com os quais medi a distância até ali, tento entender que objeto é aquele no centro da mesa. Ele é quase inteiramente preto, parece pesar uma tonelada e está desgastado por anos de uso. Em complemento, tem fechos azinabrados que estalam ao abrir.

E ao revelar o seu interior, invade a minha existência com uma mistura de canela, resina e cordas de aço.

“O que é isso”, eu pergunto. “É um violino.”

Esta cena está gravada em minha memória há mais de 40 anos. É a primeira lembrança que tenho.

Todo o seu aspecto sensorial, as suas emoções, o detalhamento visual do piso hidráulico, seguido do vermelhão, da poeira dos tijolos…

…da sensação de ter achado que havia ganho um instrumento – quando nem sabia o que era isso – , e depois descobrir que era apenas emprestado para um evento que meu pai faria. 

Os risos sobre a minha presunção depois, a tentativa de tirar um som. O piano ao lado que tinha marcado a nota dó central com um adesivo para eu sempre começar dali as primeiras escalas.

Tudo gravado. Registrado. Como estou fazendo com a minha voz agora em um equipamento que capta todos os detalhes exatamente como acontecem no exato momento em que acontecem, para a posteridade que se impõe a partir deste mesmo momento da gravação

Porque, como todo mundo, eu sempre acreditei que a memória é um gravador. O fato de falarmos “gravei em minha memória”, inclusive, denota isso. 

Achamos então que, lembrar, é acessar um registro fiel e infalível de nossa própria existência ou de outras que já nos cercaram algum dia.

Só que é grande a chance deste evento jamais ter acontecido. Ou, de representar na verdade a ordenação de várias lembranças que costurei com alguma lógica ao longo da vida. Sempre diferente.

O piano poderia não estar ali nessa época. Ou eu não ter achado que o violino era meu. Ou ainda ter apenas ouvido falar sobre um violino emprestado e ter criado a cena…

Ou, se preferir embarcar comigo na metáfora: a descoberta de um violino em casa pode ser no máximo a mesma sombra dos cobogós projetadas no tempo. Parecem duras e precisas. Mas são apenas sombras. Que se movem.

Por isso, no Penso#15, depois de alguma doída ausência, convido a minha provável audiência para visitar os desmandos da memória, como ela se forma e porque temos a necessidade de considerá-la infalível. 

A memória, essa falsa

Li que alguns estudiosos definem a memória como o “arquivo imperfeito de nossa experiência”. Nesse processo de desinformação, muitas vezes, criamos aquilo que é chamado de Falsa Memória. Isso pode acontecer pela ação de agentes externos, pelo acúmulo de nosso conhecimento sobre determinado fato ou até por completo desconhecimento sobre ele.

Até aí tudo bem: vacilamos aqui e ali e nosso cérebro sempre faminto por padrões, resolve complementar as memórias com algo que achamos ser o certo. 

Mas… e se fosse possível CONSTRUIR uma falsa memória na cabeça de alguém… ou construírem na nossa?

Pesquisadores como Elizabeth Loftus dizem ser possível, através da sugestão criar essas lembranças. Loftus nos apresenta ainda um detalhe importante: o tempo entre um evento e o chamamento sobre a memória desse evento é fundamental para a criação de falsas memórias.

Ou seja…quanto mais tempo passar, mais falsa sua memória sobre um evento, uma pessoa, uma época inteira pode ser. Mais moldável ela é.

Loftus, psicóloga e pesquisadora de memória, nos traz o exemplo de Steve Titus. Um cara gente boa que ao voltar de um jantar com sua noiva foi parado por um policial porque tinha um carro PARECIDO com um criminoso que violentara uma menina horas antes. 

E ele mesmo era também um pouco PARECIDO com o próprio criminoso. Foi preso, condenado, conseguiu reverter a pena e decidiu processar o ministério público. Um dia antes de sua audiência, esgotado e submetido a intenso estresse, teve um ataque cardíaco e morreu.

Percebem a diferença de impacto que um mesmo mecanismo mental pode ter na nossa vida e na dos outros?

Achar que a chave de casa estava na cozinha quando estava na sala é uma coisa. Ser testemunha de um crime e, a partir de  uma falsa memória, ajudar a condenar um inocente… é outra. Ou, muitas outras, porque ¾ das condenações nos estados unidos podem ser atribuídas a algum tipo de falsa memória. Três em cada quatro.

E é assim que começa o Jogo da Primeira Lembrança

Já reparou que a habilidade de criar falsas memórias tem sido utilizada ao seu redor sem que você sequer perceba? 

Tomemos como exemplo uma situação corriqueira e quase inocente: a quantidade de pessoas com menos de 30 anos que adora ter vivido nos anos 80.

Elas cantam músicas da época como se tivessem comprado LPs em supermercado. 

Assistem novamente as novelas naquele formatinho 3×4 no canal de reprises. Como se fossem realmente reprises.

Usam roupas coloridas e bufantes. Organizam festas regadas a videogames de primeira geração. Anos 80. Na veia.Só tem uma questão: grande parte nasceu no final dos anos 90. 

Como explicar?

Penso que a melhor forma de explicar é analisar a indústria da Nostalgia.

Esse amor à Nostalgia, sobretudo nas redes sociais têm sido uma das maiores manifestações da construção de falsas memórias que temos visto. 

Pegando ainda carona nos argumentos de Loftus: Qualquer coisa que ouvimos sendo dita com confiança, detalhes e recheada de emoção tem sido interpretada como verdade.

E, confiança, detalhes e narrativas emocionais têm sido os ingredientes da ágora moderna, do grande centro de discussões do nosso tempo… as redes sociais.

E, nós, esgotados pela compressão do espaço/tempo, vivendo em sociedades de ultra performance, subempregados em nosso precariado de sempre, terceirizamos a nossa construção de memória a essa imensa biblioteca mundial.

E, ela, fez de nossas memórias, a chave de programação para a venda de nossas identidades. Ou, melhor dizendo, a venda dos dados geradas pelas pegadas digitais que deixamos em busca da formação de nossas múltiplas identidades.

Estamos leiloando todos os dias, o espaço destinado à nossa primeira lembrança. Todo dia ela muda. Todos os dias, somos o palco de falsas memórias.

O resultado? 

A gente sentado na sala, por exemplo, para acompanhar à série de aventura sobrenatural na qual um grupo de garotos visita o mundo inverso. E lembramos de tudo que ainda não vivemos.

Agora me conta aí nos comentários: qual a sua primeira lembrança de hoje?

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Penso#15: Roteiro, edição e mixagem, mauroamaral. Gravado em 16 de novembro de 2019.

Sobre o autor

Mauro Amaral

Meu principal foco de atuação é a criação de projetos de conteúdo interessantes, divertidos e leves para marcas, organizações e produtos.

Em função desta opção, transito bem entre jornalismo, publicidade e entretenimento, pesquisando continuamente e filtrando ativamente as tendências do momento para aplicá-las no dia a dia dos meus clientes.

Construo, mantenho e estimulo equipes criativas há 10 anos; com especial predileção por identificar novos talentos e trabalhar potenciais multidisciplinares.

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por Mauro Amaral

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