Penso#11 – A menina Agatha Félix, a Necropolítica e o Nada

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Em função de novas atividades profissionais, tenho terminado a edição do programa aos domingos. E, no domingo dessa semana, uma estranha conexão de acontecimentos a frente com algo para o que, embora soubesse que um dia iria acontecer, nunca estamos realmente preparados: o nada.

Conecto de forma direta o fluxo de minha consciência aos ouvidos da sua para apresentar uma Graphic Novel de Jim Starlin, quatro meninas de classe média flertando com o improvável e a pequena Agatha, vítima da certeza da atuação da Necropolítica no Rio de Janeiro.

É logo depois do PLAY. Comente e divulgue. Assine.

É domingo, meus filhos estão bem. Tenho motivos para começar a achar que 2020 talvez não seja tão puxado que 2019. Mas, ainda assim, termino o roteiro não como Gilgamesh, déspota corporativo, não como as quatro meninas flertando com o improvável e muito menos como Agatah, que deixou a vida tão cedo.

Conectando os fragmentos do fluxo da minha consciëncia e conectando com os ouvidos da sua, sou apenas o VOID. Olho apenas o nada. E as 1621 palavras do roteiro me parecem ser tão inócuas como a folha em branco do começo.

Talvez, a gente precise apagar alguns trechos da história.

Para além da experiência auditiva

Para saber mais sobre o projeto


Transcrição do episódio

Sabia que um dia isso iria acontecer. Era apenas questão do cronômetro sempre em contagem regressiva dos acontecimentos zerar e o momento chegaria.

Mas, como bom ser humano, relutante que sou em assumir a minha pequenez, posterguei o inevitável.

Cerquei esse fato certeiro com um glacê de boas intenções. Glicose alta à parte açucarei a rotina com boas colheradas de indulgência.

Veio o malabarismo intelectual recentemente reconquistado, espalhando as mossas e embaçados do cotidiano pouco contemplativo com um verniz de boas leituras e discussões.

Todo trabalhado no carinho, revisitei momentos de minha rotina de pai, registrados em uma volta de carro com a família. Fatias de vida, eu disse, que nos lembrar que de perto, ninguém é normal. 

E, afinal, o que é ser normal se não viver pela expectativa dos outros. Ou , ainda, da expectativa que achamos que os outros têm sobre nós.

E segui analisando aqui e ali coisas que me perpassaram, sempre primando pela diferença, seja como preceito de pensamento ou de respeito à existência do outro. Você sabia que todos nós somos o outro de alguém né? 

E que pensar no outro é, antes de tudo, pensar em si mesmo em outro momento, no futuro, quando o jogo virar?

Calma, estou me perdendo aqui.

Voltando. 

Acumulei fatias e fatias, confeitos e glacês e fui seguindo. Lancei um piloto, dois ou 3 programas iniciais, um especial do dia dos pais…

Mas, nada me prepararia para o momento de hoje.

Que não é de comemoração. Que não é de lamentação apenas. Que não é sobre reclamar, agradecer ou trocar de assunto. Que não é sobre os outros que vejo no Metrô, ou os mesmos que vejo ao meu redor em atividades profissionais várias. Que não é sobre família, sobre descendência, ascendência, transcendência.

É que, olhei para a folha em branco do roteiro, que agora chega em sua trecentésima trigésima sétima palavra e, pela primeira vez desde o começo de podcast, encarei.

O NADA.

Como disse no começo, sabia que esse dia chegaria. Mas acho que nem tenho roupa para encarar o NADA.

E, de súbito, me vem uma lembrança que se conecta com o Penso#9, sobre a Bienal, minha relação com os quadrinhos e os desmandos de governos impopulares de ontem, hoje e sempre. 

Trata-se da adaptação de Jim Starlim  do primeiro grande conto da civilização humana, O Gilgamesh. A lenda dos sumérios é recontada com um viés retrofuturista, como é do feitio do criador de Dreadstar e nos coloca ao lado do protagonista de mesmo nome – uma alienígena criado por hippies…

Gil foi elevado à categoria de líder supremo do ocidente, regido agora não por nações mas por uma única corporação e decide ir investigar um experimento russo que deu errado gerando um imenso NADA, chamado de Void.

Nos quadrinhos, o que vemos é apenas uma enorme folha em branco.

Apenas uma folha em branco. O que é a metáfora interessante tratando-se de roteiros.

Encaro o roteiro do Penso#11 e me toco que ela é também uma imensa folha em branco. E é importante que minha provável audiência entenda um ponto.

Não é por falta de assunto. 

Mas pela desconfortável conexão entre as situações dos últimos dias. 

Começo lembrando de quatro amigas que tomavam café a alguma mesas de distância, ainda na quarta-feira. O papo é um diálogo sobre as piores mortes que tentariam evitar. Ou pelas quais quase passaram.

“Uma vez estava em Nova York e meu hotel pegou fogo. Foi uma correria, eu era adolescente e só pensava nos pares de tênis que havia deixado no quarto do hotel. Mas deu tudo certo.”

“…pior eu, menina, testemunhei um terremoto na California uma vez. Que terror, que terror deve ser morrer assim…”

Uma terceira completa: “…acho que morrer afogada seria ainda mais impactante para mim. Uma vez em Fernando de Noronha eu estava com um pessoal mergulhando e do nada o equipamento começou a falhar e se não fosse o instrutor…”

Dada a sua futilidade e descompromisso com a realidade da cidade que as cerca, obrigo mentalmente a cena a entrar em fadeout enquanto divago.

Quatro meninas da pequena parcela abastada e protegida da sociedade carioca, debatem sobre qual tipo de morte seria a pior para elas. Mas, a verdade é outra. 

Eu propositalmente esqueci de mencionar que estava sentado em um café de um dos shoppings mais resguardados da parte mais absastada da cidade. Um lugar onde uma privada por custar 15 mil reais, para vocês terem uma ideia. 

Enfim, elas dialogavam na verdade, e aqui falo sore minha interpretação sobre o fato, de com essa fronteira é tão estranha a elas, como em uma fantasia. Como um void que nunca irão visitar para não descobrir a verdade por trás… no nada.

Voltando mais uma vez. Aquilo me incomoda porque, na verdade, sei que em alguns anos, 50 se tantos, existirão os primeiros amortais. Gente com tanta condição que morrerá somente se quiser, trocando seus órgãos… ou ainda, tenho seu DNA editado antes de nascer para viver o quanto achar que merece. Sim, existirá a meritocraria da eternidade. 

Querer é poder. Principalmente se o Poder é o seu querer.

Mas, do outro lado do Void, temos as vítimas. Que experimentam a descartabilidade de suas vidas, como a menina Ágatha.

Entre quatro meninas quase mortas e uma menina quase viva desde sempre, ele está lá. O NADA.

Ou, como prefere determinar Achille Mbembe, a Necropolítica. Com vocês, um trecho do pequeno ensaio de leitura fundamental para os dias de hoje (o link está no post desse programa em mauroamaral.com):

Examino essas trajetórias pelas quais o estado de exceção e a relação de inimizade tornaram-se a base normativa do direito de matar. Em tais instâncias, o poder (e não necessariamente o poder estatal) continuamente se refere e apela à exceção, emergência e a uma noção ficcional do inimigo. Ele também trabalha para produzir semelhantes exceção, emergência e inimigo ficcional. 

Em outras palavras, a questão é: Qual é, nesses sistemas, a relação entre política e morte que só pode funcionar em um estado de emergência? 

Na formulação de Foucault, o biopoder parece funcionar mediante a divisão entre as pessoas que devem viver e as que devem morrer. Operando com base em uma divisão entre os vivos e os mortos, tal poder se define em relação a um campo biológico – do qual toma o controle e no qual se inscreve. 

Esse controle pressupõe a distribuição da espécie humana em grupos, a subdivisão da população em subgrupos e o estabelecimento de uma cesura biológica entre uns e outros. Isso é o que Foucault rotula com o termo (aparentemente familiar) “racismo”.

Que a “raça” (ou, na verdade, o “racismo”) tenha um lugar proeminente na racionalidade própria do biopoder é inteiramente justificável. 

Afinal de contas, mais do que o pensamento de classe (a ideologia que define história como uma luta econômica de classes), a raça foi a sombra sempre presente sobre o pensamento e a prática das políticas do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a desumanidade de povos estrangeiros – ou dominá-los. 

Referindo-se tanto a essa presença atemporal como ao caráter espectral do mundo da raça como um todo, Arendt localiza suas raízes na experiência demolidora da alteridade e sugere que a política da raça, em última análise, está relacionada com a política da morte.

Com efeito, em termos foucaultianos, racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, “aquele velho direito soberano de morte”.

Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição de morte e tornar possível as funções assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é “a condição para a aceitabilidade do fazer morrer”.

Foucault afirma claramente que o direito soberano de matar (droit de glaive) e os mecanismos de biopoder estão inscritos na forma em que funcionam todos os Estados modernos; de fato, eles podem ser vistos como elementos constitutivos do poder do Estado na modernidade. 

Segundo Foucault, o Estado nazista era o mais completo exemplo de um Estado exercendo o direito de matar. Esse Estado, ele afirma, tornou a gestão, proteção e cultivo de vida coextensivos ao direito soberano de matar. 

Por uma extrapolação biológica sobre o tema do inimigo político, na organização da guerra contra os seus adversários e, ao mesmo tempo, expondo seus próprios cidadãos à guerra, o Estado nazi é visto como aquele que abriu caminho para uma tremenda consolidação do direito de matar, que culminou no projeto da “solução final”. Ao fazê-lo, tornou-se o arquétipo de uma formação de poder que combinava as características de Estado racista, Estado assassino e Estado suicida.

É domingo, meus filhos estão bem. Tenho motivos para começar a achar que 2020 talvez não seja tão puxado que 2019. Mas, ainda assim, termino o roteiro não como Gilgamesh, déspota corporativo, não como as quatro meninas flertando com o improvável e muito menos como Agatah, que deixou a vida tão cedo.

Conectando os fragmentos do fluxo da minha consciência e conectando com os ouvidos da sua, sou apenas o VOID. Olho apenas o nada. E as 1621 palavras do roteiro me parecem ser tão inócuas como a folha em branco do começo.

Talvez, a gente precise apagar alguns trechos da história.

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mauroamaral.com é o fluxo da minha consciência e os ouvidos da sua. 

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Penso#11, gravado em 22 de setembro de 2019

Roteiro, edição e mixagem: Mauro Amaral

Com trechos da GloboNews, de Gilgamesh II de Jim Starlim e o ensaio Necropolítica de Mbembe.

Sobre o autor

Mauro Amaral

Meu principal foco de atuação é a criação de projetos de conteúdo interessantes, divertidos e leves para marcas, organizações e produtos.

Em função desta opção, transito bem entre jornalismo, publicidade e entretenimento, pesquisando continuamente e filtrando ativamente as tendências do momento para aplicá-las no dia a dia dos meus clientes.

Construo, mantenho e estimulo equipes criativas há 10 anos; com especial predileção por identificar novos talentos e trabalhar potenciais multidisciplinares.

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por Mauro Amaral

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